“Até hoje, nenhuma investigação explorou o inferno em que se forjam as deformações que, mais tarde, vêm à luz do dia sob a forma de alegria alvoroçada, de fraqueza, de sociabilidade, de uma adaptação bem-sucedida ao inevitável e de um desembaraçado sentido prático.”
(Theodor Adorno)
Qual o significado da profissão docente no ensino básico? Hoje, é provável que nunca se tornou tão imperativa e angustiante tal questão quando se observa a desertificação do sistema de ensino brasileiro. Se por um lado o sistema público de ensino é um retumbante fracasso como modelo pedagógico, por outro lado o sistema privado é, salvo infinitésimas exceções, um amontoando de empresas cujo objetivo único e sua lucratividade e ponto final.
É perturbador para qualquer pessoa que acredita na importância da educação como elemento fundador de uma sociedade minimamente civilizável quando deparamos no caos e no descaso do Poder Público diante do apodrecimento sistemático do modelo de educação básica pública. Portanto, restam ao profissional de ensino duas alternativas necrosadas: aderir servilmente aos mais absurdos modelos de precarização de contratos trabalhistas das escolas privadas ou se contentar complacentemente na opressão diária do modelo fascista estatal.
A banalização da violência há tempos deixou de ser um mito atordoante para se tornar algo da intimidade do nosso cotidiano opressor, desigual e excludente. No que tange ao modelo estatal educacional, a opressão se tornou cada vez mais dramática se levar em consideração o nível de insegurança dentro das escolas. Escolas não, cadeias-mirins. Por conveniência, situamos tão somente o caso do estado de São Paulo, maior cidade da América Latina em potencial econômico. A escola pública é um modelo de “não-escola”, ou seja, tudo que deveria nunca ocorrer dentro de um sistema voltado para a construção psico-pedagógica de um ser humano desenrola com a mais complacente conveniência do Poder Público. A questão da violência dentro das unidades escolares se tornou banalizada a tal ponto que se tornou “anormais” escolas públicas que não registrem ocorrências de violência com maior gravidade.
Em busca dos “culpados”, aos que defendem que a violência escolar é apenas parte da “bagagem externa” que os alunos trazem para dentro da sala de aula. Todavia, a “externalidade da violência” não passa de mais um mecanismo paliativo que visa tão somente responsabilizar o elo mais fraco da enorme cadeia caótica do modelo público sobrecarregando todo o peso de um deletério modelo educacional nas figuras angelicais de professores e alunos. A escola não é um oásis beatificado, e para relembrar Theodor Adorno, porém não poderá ser mais uma replicadora da barbárie externa pelo simples fato que justamente sua condição social é de conter ou minimizar as novas gerações dos auspícios da insanidade humana. Para Adorno, regatando a dimensão psicanalítica de “pulsão de morte”, o impulso para a morte não se restringe apenas na dimensão subjetiva da existência humana e transborda os efeitos de sua ação para as estruturas sociais e econômicas.
A arquitetura das escolas públicas é visivelmente fadada para o modelo de internalizar mais violência. Verdadeiros cadeiões que confinam alunos, material pedagógico inexistente e estruturas físicas ineficientes, equivocadas e deterioradas. A péssima remuneração do quadro de funcionários apenas alicerça o modelo de descaso retumbante do Poder Público. A “não-escola” condiciona o suposto aprendizado em um replicador de desesperança, descrença no futuro e violência gratuita. Reduz cada vez mais um horizonte de perspectivas futuras para cada aluno e conduzindo de forma subliminar, em alguns casos, a ideologia de que o melhor dos caminhos seria a contravenção e a barbárie. Para os adeptos do “conteudismo escolar”, se amplia a cada ano o volume de alunos que saem das escolas públicas com seu “diploma” debaixo do braço e com gravíssimas deformidades ou ausência de conhecimentos mínimos. O modelo fascista de escola pública trabalha com as premissas de que é o locus do assalariado, desvalido ou remediado, predominando assim os filhos da “escória” da sociedade. Desta maneira, qualquer alternativa de desmontar um modelo falido é algo “descartável” e desnecessário, uma vez se resume a questão clássica em épocas não-eleitoreiras: quem se preocupa com a escória?
Na hipermodernidade recheada de carnífices consumidores cujas premissas básicas mais emblemáticas podem ser sintetizadas no binômio “consumir ou perecer”. Quando o modelo escolar privado é o fomento do criadouro de consumidor-mirins, o resultado não poderia ser outro senão a amplitude do hiperindividualismo e o esvaziamento do caráter social e humanitário. As bobagens senis da “competitividade” capitalista reduzindo o ser humano à uma máquina alienada e autofágica em disputas fratricidas. Na escola pública onde as carências de toda ordem são gritantes, o fomento da ideologia do consumo se traduz em condicionantes dispersores de mais violência.
Um dos fatores que mais ser torna perverso no modelo de hiperconsumo é o enorme volume de dinheiro despejado nas mais ordinárias campanhas publicitárias para aliciar crianças e jovens. Porém, o impacto social é avassalador com diferentes graus de absorção nos diferentes níveis socioeconômicos. Os abismos são gritantes e com efeitos assimetricamente multiplicadores. O filho de uma família da chamada “classe média” terá muito mais possibilidade de se tornar um efetivo consumidor, enquanto o de um filho de um desempregado que tão somente visita vitrines fomentado o desejo da propensão a consumir. Quando um adolescente ou mesmo uma criança decide adentrar para o tráfico de drogas não é somente sua condição depauperada que é conscientemente levando em consideração, mas o seu inconsciente potencial imediato de consumidor. Entre morrer pobre a longo prazo e morrer com bens materiais a curtíssimo prazo, as escolhas são bem claras para este jovem cuja miríade de alternativas se encontra na bala e no pó ou no miserável trabalho braçal. Obviamente, é muito simplificador e muitas vezes calhorda correlacionar diretamente pobreza e violência. Todavia, com relação às civilizações materialistas, é importante refletir as possibilidades do inverso, ou seja, a não-violência poderá ser derivada de um processo de não-pobreza.
A “não-escola” é o reduto do fomento da desertificação da cidadania. Ela parte do pressuposto que o aluno não é mais que um número de prontuário e sairá com um pedaço de papel pintado chamado “diploma”, por sua vez, mais outro número nas estatísticas de desempregados e subempregados. A “não-escola” é um estoque de gados humanos que muitas vezes sequer servem para o abate nos exíguos trabalhos com carteira assinada. Torna-se patético quando empregadores reclamam cinicamente de “profissionais não-capacitados”, quando na verdade seria a própria empresa que deveria formá-los de acordo com suas necessidades. Assim, levanta-se a questão sempre presente e se aprofunda em períodos de crise do capitalismo, quem se preocupa em qualificar o trabalhador? É mais uma vez, é mais fácil colocar a culpa na escola do que as motivações imediatistas dos lucros e, assim, terceirizar seus processos. Do ponto de vista de mão-de-obra e seu fabuloso exército de reserva capitalista, a escola se torna um estranho “ônus social” entre os limites do progresso e da estagnação econômica.
A escola não é pasto ou pelo menos não deveria ser... Todavia o modelo público de ensino público completamente inócuo na sua essência e aparência, delega para uma pessoa cerca de onze anos de sua vida uma mediocridade trágica. E segundo as declarações sistemáticas e medidas punitivas dos sucessivos secretários de educação do governo paulista, é muito mais sintético e midiático a responsabilização aderente e exclusiva na figura do professor. Naturalmente, o governo paulista utiliza-se de uma mídia sem caráter, responsabilidade ou compromisso ético para divulgar uma série de reportagens levianas, improcedentes e parciais a respeito da educação pública. Todo este engodo possui a medíocre tentativa de colocar a sociedade e toda a chamada “opinião pública”, pais e alunos contra os professores da rede foi até agora a medida mais inteligente aplicada pelo Governo do estado de São Paulo!
Portanto, nada de alterar as podres estruturas do falido modelo de ensino pública e sim, responsabilizar punitivamente o mais fraco de todos os elos da velha cadeia da produção em série de seres bestializados: os professores. Uma vez mais, a profissão docente é um elemento estúpido e inútil dentro de um modelo da “não-escola” onde o mais importante é a construção da barbárie social. Entre vândalos, semi-analfabetos e vagabundos todos são subprodutos do lixo educacional promovido pelo Poder Público. Agora há uma novidade brotada das cabeças iluminadas provenientes da Universidade de São Paulo: as poucas almas que passarem pelo corredor polonês da escola pública ganharam “bônus” no vestibular da Fuvest. Bravo! Outras universidades públicas “politicamente corretas” estão aderindo pela preferência do sistema de pastos e guetos sociais com a famigerada idéia de “cotas”. Para relembrar a metáfora de Karl Polanyi a respeito do moinho capitalista, como é impossível não perceber, o modelo usual de educação básica pública é um enorme moinho de triturar covardemente pessoas. Na replicação da barbárie, não restando outra saída para professor da “não-escola” e refém do aparelhamento inócuo do modelo, ser cúmplice involuntário deste engenho massificado de reprodução da mediocridade. Caminhamos a passos largos para destruir qualquer réstia de esperança na arquitetura de uma sociedade que desvela seu fascismo intestinal segregando o futuro de milhares de jovens para as fronteiras da barbárie.
Textos de Referência:
ADORNO, Theodor. Minima Moralia: reflexões a partir da vida danificada. São Paulo: Ática, 1993.
SORIA, Ana Carolina S. Mínima Moralia: o passado preservado no presente. Revista Mente, Cérebro e Filosofia, n. 7, São Paulo: Duetto, 2008.