quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Educação e Barbárie: Adaptação ao Caos na Política da Mediocridade


Em sua luta pela existência (Dasein) os homens necessitam do esforço do conhecimento, da procura da verdade, porque não encontram revelado de imediato o que é bom, justo e benéfico para eles. (Herbert Marcuse, “Cultura e Psicanálise”)


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Uma grande capacidade humana é o poder de adaptação nas mais áridas situações e ambientes. Praticamente em quase todas assimétricas regiões do planeta Terra existe presença humana no desenvolvimento de algum tipo de sociabilidade entre núcleos de indivíduos. As privações materiais ou ambientais são trabalhadas de forma que a luta pela sobrevivência seja a força-motriz de atos e ações individuais ou coletivas. Neste mecanismo de sobrevivência, uma situação de barbárie poderá ser configurada de forma a atenuar seus efeitos deletérios a tal ponto que possa se tornar “aceitável” a degradação humana em troca de algumas “sublimações” ou “concessões” da dignidade básica que constitui o ser humano. Sorrateiramente, é no ritmo das “concessões circunstanciais” que se alicerça o grande perigo para a própria sobrevivência humana.


Uma curta matéria do matutino “Folha de S. Paulo” desta quinta-feira, 05/11, merece ser digno de nota. Com o título, “Rio treinará aluno para agir durante tiroteio” o jornal destaca o projeto da prefeitura da cidade do Rio de Janeiro de “treinar” professores para agirem em situação de tiroteio. “A partir do ano que vem, medida vai envolver 100 mil estudantes e 4.000 professores de 150 escolas em áreas de risco”, destaca a reportagem. Um detalhe inusitado do programa é o nome do projeto da prefeitura carioca com apoio da UNESCO: “Escolas do Amanhã”. Para deixar mais insólito o debate, na mesma reportagem, assinala uma “crítica” da ex-secretária de Educação do Rio de Janeiro, Regina de Assis: “Os professores e alunos já sabem como agir. Isso é jogada de marketing”. Traduzindo: a barbárie do tiroteio alvejando ambientes escolares na cidade-olímpica é tão natural quanto o ar com cheiro de pólvora que adentram nos pulmões das crianças. Mais surreal impossível!


Sem desejar recair numa bizarra e provinciana comparação dos níveis de violência genocida entre São Paulo e Rio de Janeiro, esta simplória matéria no jornalão paulista poderia causar maior torpor nos leitores mais desavisados ou que não tem muito conhecimento das implícitas realidades do cotidiano. Com merecidos créditos, a cidade-olímpica cuja proteção imaginária é feita pela generosidade do Cristo Redentor é o alvo de toda saraivada de críticas pela escalada absurda de violência. Todavia, utilizando uma pieguice expressão conhecida popularmente como “chutar em cachorro morto”, é muito mais fácil criticar o óbvio do que olhar o que está atolando os próprios pés. Poder-se-ia inferir afobadamente que a Guerra Civil Fluminense é um problema local e longe das demais “realidades brasileiras”. Ledo engano! O que falar da violência silenciosa que contaminou quase todo o sistema de Ensino Básico das escolas públicas do Estado de São Paulo?


A estupidez da barbárie do cotidiano escolar não é apenas restrito aos limites da Grande São Paulo e segue interior adentro. Cada vez mais, sem maiores alardes e dentro da surdina que range os portões escolares, a tolerância ao consumo de drogas dentro e fora de recintos escolas e o medo que muitos profissionais da Educação têm que conviver em ambientes degradados longe de possibilitar o convívio de seres humanos. Avolumam-se exponencialmente inúmeros casos de agressões por parte de alunos contra professores. "Ofender", "intimidar" e "ameaçar" são verbos usuais cada vez mais empregados na rotineira relação psicanaliticamente atormentada entre professores e alunos. A adaptação aos insultos gratuitos é uma rotina consagrada de grande parte dos professores na sua tarefa “sacerdotal” de operar ilusórios milagres educacionais em regime de total devassidão de sentido. A impunidade e a certeza que toda relação humana se baseia numa truculência assimétrica de valores e significados é um terreno fértil para a perpetuação de contínua elasticidade das condições de barbárie.


A ação que mais caracteriza o ambiente escolar, em especial das escolas públicas geridas pelo governo de São Paulo é o fingimento. Como a Alice no “País das Maravilhas”, personagem da obra clássica do britânico Lewis Carroll, o governo tucano através da Secretaria de Educação (SEE-SP) há duas décadas que patina num mundo encantado de um mágico surrealismo fingindo que organiza a Educação pública. Há poucas semanas, Paulo Renato Souza, o atual secretário que ocupa a pasta da SEE-SP do governo José Serra, concedeu uma entrevista para as Páginas Amarelas da amarelada “Revista Veja”. Na neoliberal e colonizada Revista Veja, Paulo Renato demonstrou que é um excelente secretário de Educação sueco ou finlandês e buscou fingir que conhece a realidade do sistema educacional que gerencia. Na política do caos, o sórdido modelo tucano de Educação Básica é meramente culpar os professores por todas as mazelas do sistema e jogar a sociedade contra a classe trabalhadora na Educação (prática usual de governos neoliberais). O atual mote da gestão de Paulo Renato é um imbecilizado “Plano de Carreira” que utiliza o cínico modelo da “meritocracia” por meio de senis provinhas como meio de coerção dos professores. Nas entrelinhas do “Plano de Carreira” já aprovado pela Assembléia Legislativa de São Paulo (ALESP), os professores do Ensino Básico do Estado de São Paulo serão os primeiros servidores públicos do país que terão o “privilégio” de constituir na primeira categoria a não ter mais isonomia salarial e ter anulado qualquer possibilidade de reajuste salarial via decreto-lei! Logo, para auferir lampejos que assegure qualquer aumento salarial, os professores terão que se submeter às esdrúxulas “provinhas” sob o cínico rótulo da meritocracia. Na adaptação à barbárie, não será estranho em brevíssimo tempo a movimentação de boa parte do professorado a torrar seus escassos níqueis em inúmeros “cursinhos para as provinhas” entre suas estafantes e caóticas jornadas de trabalho. Desta forma, diante do caos arquitetado pela irresponsabilidade e incompetência da SEE-SP, para a grande maioria dos professores a reivindicação de direitos básicos se tornou “inutilmente” obsoleto e, conseqüentemente, a única saída é “aceitar” a barbárie como forma de sobrevivência. Sintomático!


E segue a política do cinismo tucano e a ocultação da violência nas unidades escolares. A SEE-SP finge que tem uma equipe de segurança de policiais que fazem à risível “ronda escolar” com profissionais tão preparados quanto à Guarda Municipal que vive espancando camelôs no centro da capital paulista (mais outro bizarro cenário do cotidiano paulistano!). Com uma invisível política de segurança pública dos arredores das escolas, a SEE-SP finge que dá segurança aos precários prédios escolares. Com o consumo cada vez mais freqüente de drogas e seu facílimo acesso por parte dos alunos, tal conjunto de fatores constituiu numa geratriz de profunda dispersão da violência dentro das unidades escolares. O mais incrível é que tudo é jogado ao “Deus dará”: sem apoio do Estado para dar garantias mínimas para alunos, professores em situações de risco, sem uma política antidrogas e sem assistência médica e psicológica o resultado é o fingimento por parte do Poder Público do zelo pela Educação pública. Naturalmente, a violência dentro das unidades de ensino por parte de livre trânsito de drogas é apenas um dos aspectos que torna a unidade escolar um ambiente de profunda angústia e palco de inútil confinamento de seres humanos o qual leva o mote singelo de “educação”. Mais uma vez, boa parte das unidades escolares não passa de arcaicos campos de concentração. E a situação é ainda mais caótica!


Para ficar restrito ao caso de São Paulo, é importante frisar o fracasso retumbante do modelo pedagógico-educacional praticado pela SEE-SP. A adaptação subserviente ao caos na Educação Pública é a ordem primaz que diretores, professores e funcionários lutam diariamente para gerenciar a escassez de recursos, norteadores pedagógicos e de significado social montados em prédios que inúmeras vezes lembram muito mais à cadeias públicas. Para citar um tétrico exemplo, o autor que aqui escreve já trabalhou em uma unidade escolar integrante do sistema público da SEE-SP onde se fazia presente três enormes e pesados portões de ferro que separavam a rua do interior da “cadeia”, ou melhor, “escola pública”. Seguramente, poucas delegacias de polícia ou centros de detenção possuem formidável sistema de portões trancafiando seus confinados! A arquitetura do medo e da opressão é peça integrante da arquitetura da barbárie.


A adaptação à barbárie é a célula-mater do modelo desenvolvido pelas sucessivas gestões tucanas em São Paulo. Em belíssimas propagandas eleitoreiras do governo de São Paulo, as cenas são dignas de paisagens educacionais suecas, canadenses ou finlandesas: professores e alunos tão felizes como se estivessem num verdadeiro Paraíso dos Trópicos. Lá no Rio de Janeiro como cá em São Paulo, a adaptação ao caos é a via por onde a sociedade cinicamente se permite “aceitar” numa condição de barbárie para si e para suas vindouras gerações. Lembrando apenas em períodos eleitorais, a Educação pública é vista como algo secundário, marginalizado e situa-se como uma “dádiva” dos ricos para os filhos dos pobres condenados à serem trabalhadores no refugo do modelo capitalista, nada é levado realmente a sério neste fundamental setor social.


Para exemplificar, com a sordidez digna das novas gerações de políticos que apenas operam a “via democrática” para a manutenção do “status quo” vigente, o Brasil conseguiu consolidar um dos principais parques automobilísticos do mundo com alta capacidade tecnológica e uma sofisticada logística para atender o mercado interno e externo. Paradoxalmente, regurgita um falido e catastrófico sistema de Educação Básica. A força e compromisso do grande capital no exclusivo modelo capitalista é naturalmente com a geração de mais-valia e às favas para os seres humanos. No moto-contínuo capitalista, os humanos são apenas peças descartáveis de sua complexa engenhoca de criar auto-replicação do capital.


A cada ano, em movimento eleitoreiro, o governo das três esferas de poder alardeia aos quatro cantos do eleitorado uma nova “injeção” de recursos para a Educação. Como num passe de mágica, nada efetivamente se observa com alguma materialização, exceto algumas escolas estrategicamente “modelar” para fazer propaganda política. A constatação óbvia é que a Educação Básica “para pobres” nunca foi política prioritária de nenhum governo. Histericamente, as escolas privadas com alto valor nominal de suas mensalidades inventam miraculosamente uma série de “recursos pedagógicos” de duvidosa contribuição para o ensino-aprendizado dos seus alunos. Quando não é trivial distinguir se o ambiente privado de educação foi projetado para a finalidade de “educar” ou se constituírem em mais um shopping-center para incitar a futilidade consumista de seus alunos e extorquir dinheiro de seus respectivos pais ou responsáveis legais. Para este modelo, o princípio básico é agradar os pais dos alunos e, estes por sua vez, conseguir que sua prole conquiste assento em alguma universidade (claro, de preferência uma universidade pública!). Neste modelo mercantilizado de “conhecimento bancário”, como a tarefa da Educação Básica fosse tão somente pré-fabricar vestibulandos e futuros “bixos”. Logo, entre açougues, borracharias e quitandas, para muitos ufanistas do “modelo privado” do livre mercado da Educação, a adaptação à mediocridade caótica não é apenas “mérito” do sistema público de ensino.


A história é sempre tão conhecida e exaustivamente repetitiva: enquanto a Educação Pública verdadeiramente e visceralmente não for um projeto de Política de Estado para redefinir o papel do Estado no sistema educacional, continuará as velhas retóricas e suicidas práticas de adaptação à barbárie. Alertando que a barbárie não faz nenhum tipo de concessão para a vida e a dignidade humana. A adaptação de alunos aos tiros de metralhadores e pistolas ou a violência explícita dentro das unidades escolares é comprovação mais que evidente da falência gritante das políticas públicas do Estado.


Ademais, quando o Estado se torna inoperante e não é mais capaz de produzir ou conduzir suas ações, permite produzir um “vácuo” de poder econômico, social e político. No ínterim, insere-se nesta fenda um “Estado Paralelo” movido pela corrupção e controle de elementos que recriam a seu bel prazer uma nova “ordem” dentro do caos. A ordem do medo, da coerção e do gerenciamento delinqüente da “coisa pública” desestabiliza qualquer Estado e deixa exposta a face mais cruel da barbárie que atinge frontalmente vítimas indefesas. Relegar a Educação aos excrementos mais fétidos das inócuas políticas públicas neoliberais em troca de discursos ficcionais e a propaganda eleitoreira é construir em surdina os trágicos alicerces para uma sociedade cada vez mais insustentável do ponto humanitário. A adaptação humana à barbárie é também a sua melhor forma de auto-extermínio.