quarta-feira, 7 de maio de 2008

A “endogenização” da barbárie: a elite no safári social


Gilberto Dimenstein se situa no rol dos jornalistas que deslizam no corte limiar entre os desinformados do mundo e os cafajestes da notícia. Com o angelical título “A aventura dos jovens mestres”, disponível sua coluna da Folha Online, 28/04, Vossa Sapiência jornalística faz referência a um projeto de um dos bastões pedagógicos da fina elite paulistana, o Colégio Santa Cruz. Para “fazer a diferença na sociedade”, o colégio está levando sua seleta mini-burguesia para "ministrar" aulas para alunos das escolas públicas. Como diz Dimenstein, "é a experiência dos jovens mestres"! Quase poético!


Segundo o jornalista, nossos mestres “assim vão aprender a observar números para montarem sistemas de avaliação --daí que o nome do programa é ‘gestão comunitária´”. Subentende-se que o binômio “gestão comunitária” seja apenas uma metáfora vazia, assim como tantas outras despachadas regularmente na coluna do jornalista. Enquanto o modelo de escola pública se esfacelou num fosso de penúria, abandono e mediocridade, Dimenstein vem ao mundo com sorriso entre orelhas e profetizando as “futuras elites responsáveis”. Quanta generosidade estampada nos coraçõezinhos de nossos "jovens mestres", alunos do ensino médio do "renomado colégio"! Pela visão ufanista de Dimenstein, os professores das escolas públicas são tão imbecis que precisam dos iluminados aluninhos para fazer o seu trabalho, emanando "aulas de sabedoria" aos pretos, pobres, pardos e desvalidos.


É maravilhoso o zoológico humano da periferia paulistana! Um ótimo laboratório para os filhos da burguesia gestora da "locomotiva do país" conhecerem a "realidade" e ao mesmo tempo dar "gotas de sabedoria" para sua plebe imbecilizada. Aliás, não será novidade se a Secretaria de Educação de São Paulo e sua iluminada equipe de "teóricos do jornalzinho" convidasse nossos "jovens mestres" para dar lições aos “estúpidos” professores da rede de ensino como se dever lecionar para a plebe. Sem nenhuma dúvida, uma bela contribuição social onde a elite socializaria seus conhecimentos da forma mais prosaica e telúrica possível!Claro, como num safári em terras africanas, tudo registrado com todos os imperdíveis "closes" da lente de CARAS, a revista do nanomundo aburguesado. E por falar em CARAS, o mundo é uma festa! A plebe que incomoda.


Não seria estranho gritarem alguns defensores do pão-e-circo celebrando o sacro projeto. Numa época que os “reality shows” seduzem platéias alienadas e imbecializadas, a vida perverte a insanidade e a transforma num espetáculo patético e degradante. Besuntados da oleosidade de peroba, defenderão que a "elite" precisa conhecer o asqueroso barro da favela, a lágrima seca de uma criança desnutrida ou estudo “in loco” da economia real de uma família sobrevivendo com um salário mínimo por mês. "Nossa!", exala com ar de nojo alguma representante típica da nobreza paulistana e ainda esbraveja ao entrar no seu carro ultima geração importada se dirigindo ao heliporto: "Pobreza: Existe isto no Brasil?”. Em tempo: se sobrar alguns tostões de toda a vasta renda familiar de um salário mínimo ao mês, ninguém mais temerá tamanho recordes de dúvidas: a BOVESPA ajudará a família carente a “lucrar” na Bolsa de Valores. Chegamos enfim ao tão sonhado modelo tupiniquim de Primeiro Mundo! A elite brasileira não é apenas cruel como qualquer outra elite que vampiriza diversas sociedades, porém é possível perceber que a nossa genuinamente verde-amarela é nutrida de um sadismo incontrolável e espontâneo.


Dimenstein é um notório "profissional do jornalismo" e membro do Conselho Editorial da Folha. É claro que o projeto do Colégio Santa Cruz poderá servir de "exemplo" para os demais colégios da mesma magnitude. Nada reflete mais a condição do conflito de classes de forma tão desvelada quanto a "experiência" do Santa Cruz. Remetemos à Gilberto Freire e parimos no início século XXI as memórias pedagógicas da Casa Grande e suas lições de sabedoria para a irremediável Senzala. Tudo lindo e maravilhoso! Este belo quadro surrealista chamado Brasil, onde as relações de classes são desconstruídas e transformadas numa espécie de barroco hipermoderno.


Pode se tornar algo mais espantoso do cinismo destilado por Dimenstein é a naturalidade que os "jovens mestres" adentram na escola pública como se estivessem indo à algum zoológico humano ou uma espécie de Disneylandia da Heliópolis. Falando em zoológico, vale a pena comentar o macabro “safári turístico” por dentro de algumas favelas do Rio de Janeiro, patrocinada por algumas espertalhonas ONGs visando arrancar dinheiro de gringos em prol dos “moradores da comunidade”. Pateticamente, jovens moradores destes guetos aprendem inglês para se comunicarem com os turistas! A pobreza é vista como um espetáculo circense onde os participantes burgueses interagem com os objetos inanimados. Neste horizonte, Dimenstein perverte o sentido de classes, afinal de contas não existem classes sociais, apenas a elite e seus objetos lúdicos de diversão e recreação. Aliás, é da natureza canibalesca do capitalismo engolir culturas e expelir consumo. Soa paradoxalmente patético, por exemplo, vitrines de lojas de luxo vendo o estilo "periferia" para a jovem elite surfando nas ondas do capital.


Eis o "choque de realidade" balbuciado por Dimenstein. O Brasil tem uma estranha construção de trabalhar a pobreza. Aqui, não se elimina a pobreza, mas se endogeniza a barbárie. A "responsabilidade social" aqui é fazer pirotecnia diante das câmeras (e ainda descontar no Imposto de Renda), burlar a fiscalização estatal e aviltar-se da mais-valia de seus funcionários. A miséria que vira luxo e o luxo que lucra com a miséria. Nada mais simbólico do que nossa principal festa popular, o carnaval, no cenário surrealista do Sambódromo do Rio de Janeiro. Lá, asfalto e periferia, em três dias, podem alegremente trocar de papéis pulando alegremente sob a batuta de um reco-reco, tamborim ou pandeiro saltitante. A doméstica vira rainha e o patrão seu criado. E no compasso do abre-alas de Dimenstein, os "jovens mestres" ensinam sua escória publica (os mais destacados, quem sabe, futuros empregados e o restante entre a informalidade e a cadeia) a tabuada dos nove, a ler o guia completo do turismo da cidadela do Mickey e balbuciar alguns trocadinhos efêmeros na língua do Tio Sam. A educação para emacipação?


A “internalização” da barbárie tem efeitos mais nefastos do que a sua face externa. Daí que se nutre o caráter endógeno de um sistema de retro-alimentação, ou seja, a miséria que sobrevive do circo social e, por sua vez, o mesmo circo social perpetua a miséria. Com o caráter endógeno da barbárie, ou seja, realiza-se o processo de “endogenização” e, desta maneira, cria-se a impossibilidade de rupturas substanciais. O necrosado tecido social deixa suas marcas mais ressaltadas nas explosões endógenas de violência e agressividade banalizada. Contudo o aparato da aparelhagem policial contribui para sufocar qualquer tentativa de eclosão de rupturas ou transgressões ao “sistema democrático”. O “valor” do atávico cinismo resultante da democracia à brasileira se sustenta na opressão de uma parcela de abastados contra o restante de miséria e depauperação. A brutal concentração de renda do país não poderá ser entendida apenas como um descompasso da diluição de riquezas, mas um poderoso instrumento de dominação, controle e coerção social. Assim, o safári da elite pela miséria não apenas reforça o inconsciente entre opressores e oprimidos, mas que delimita a linha entre os que estão “dentro” e os que viverão na sua margem entre as sombras e migalhas. Logo, fazer a pilhagem da escória empurrando-a para os grotões e guetos e confiando-os lá para que não atrapalhem a “boa ordem social”[1].


Nesta esteira, o final do artigo de Dimenstein é simbólico a respeito dos "jovens mestres" com sua profecia de rodapé de livro de auto-ajuda: "(...) talvez, quem sabe, estejam ensinado a elite adulta a mudar o país mudando a educação, atuando dentro das escolas". Cabe avisar a Dimenstein que a tal "elite adulta", responsáveis pelos "jovens mestres", está há séculos no poder e que suas crias apenas continuaram a se perpetuar na manutenção do status quo vigente nas relações de classe. "Mudar" para continuar exatamente como está. Que bela lição de mestres!



Referência:

DIMENSTEIN, Gilberto. A aventura dos jovens mestres. Folha Online, São Paulo, 28 abril 2008. Disponível em:

http://www1.folha.uol.com.br/folha/pensata/gilbertodimenstein/ult508u396533.shtml

Acessado em: 05 maio 2008.




[1] Para maiores detalhes, veja MENEZES, Wellington F. ; SILVA, Sérgio A. da . A guerra civil fluminense, a modernização excludente e a crise do Estado brasileiro: da canibalização à carnavalização da barbárie. In: VI Semana de Pós-Graduação em Sociologia, 2007, Araraquara. VI Semana de Pós-Graduação em Sociologia, 2007.

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