O problema verdadeiramente prático da sociedade reside na relação que suas forças e formas estabelecem com os indivíduos – e se a sociedade existe dentro ou fora deles. (Georg Simmel, 1858-1918, historiador e filósofo alemão)
Uma das profissões mais ingratas dentro da sociedade certamente é o ofício de professor. No caso brasileiro, a situação é agravada se sua tarefa é ministrar em escolas públicas. Longe de buscar fazer deste espaço um fútil momento de corporativismo sindical, a questão da educação é muito mais além do que alguns demagogos de ocasião possam suscitar em seus pomposos artigos vazios na grande mídia. Como pensar na educação em tempos de letargia e barbárie?
Toda vez que tenho que entrar na escola pública onde leciono, sou levado a refletir uma pergunta latente: por que devo entrar numa sala de aula? Sem levar em consideração meu “magnífico” salário-base de cerca de dois salários mínimos, meu esforço é buscar um significado que paute a natureza do meu ofício perante as atrocidades que nossa sociedade, em particular a miopia governamental, faz com gerações de jovens. Por mais que procuro uma “leitura academicista” sobre a realidade do sistema educacional brasileiro, em particular, o paulista, quase não encontro parâmetros que possa diagnosticar um quadro com maior aferição que o momento exige.
Mergulhando mais a fundo na questão. Mais do que meramente um ofício onde se possa ter o pobre ganha-pão, a profissão de professor deve prioritariamente está atrelada a uma construção social. O “ofício de mestre” não pode ser superficial e sem ser conduzida como se fossem meramente ações irresponsáveis da canalhice corporativa. Escola jamais pode um chão de fábrica automatizado ao estilo fordista. Sou pragmático quando entro na sala de aula e tenho que encarar meus alunos. A sensação é estar entrando no Purgatório. O que difere é a consciência dos que estão sendo purgados dentro dos limites quadrangular da sala. Refletindo como economista, o que tenho na minha frente é apenas uma massa que entrará (quase invariavelmente) no mercado de trabalho informal, sem carteira ou direitos de qualquer natureza. Talvez alguns deles possam se alocar na construção civil ou serviços domésticos sem maiores regalias. Quando não muito vão adentrar na marginalidade e dali somente sairão quando estiverem mortos. Todavia, pensando como um cientista social, o que percebo é a quantidade absurda de pessoas que são pessimamente auxiliadas para a vida. Uma sociedade canibalizada como a nossa, onde vidas são destruídas sem maiores dilemas, jogar gerações inteiras no semi-analfabetismo em um incipiente mercado de trabalho é certamente a mais covarde construção governamental para os tais “filhos da pátria” (o trocadilho pode suscitar o meretrício).
Trabalhar em qualquer sistema falido é como queimar seus pés em pura brasa. Porém, quando este sistema é constituído de vidas humanas, a questão é muito mais greve. Em um dos seus textos clássicos, os alemães Theodor Adorno e Max Hokheimer expoentes máximos da chamada Escola de Frankfurt, tinham como preocupação a educação como uma poderosa bastilha para se evitar o holocausto de Auschwitz, ou seja, a construção da barbárie promovida pela cruzada messiânica e megalomaníaca do nazismo. Existe também o mito quase consensual que a educação é a panacéia contra a desconstrução da sociedade. Neste sentido existem a meu ver dois elementos fundamentais. O primeiro é que uma escola, por si mesma, jamais poderá ser uma segura bastilha enquanto existir uma sociedade que preze enlouquecidamente aspectos materiais em detrimento aos humanos. Neste contexto, pouco importará as construções teóricas e pedagógicas de “formatação” do meio escolar. O máximo é que teremos seres humanos que se adaptarão melhor do que outros na selva impiedosa do capitalismo. O impiedoso discurso promovido pelo “darwinismo social”, e na sua estirpe mais cruel, o “darwinismo socioeducacional” quando se deixa imperar a “seleção natural” dentro da sociedade. O segundo aspecto, e acredito que possa ter mais relevância, são as assimetrias completamente cínicas entre as expectativas que a sociedade deposita na escola e os meios pelos quais são dadas as condições de trabalhos para profissionais do sistema educacional atuarem de forma mais digna. Em pleno século XXI, a tríade saliva, suor e giz ainda são os elementos constituintes do material de trabalho do professor da rede pública. Contra fatos não adianta torrar dinheiro público em propagandas em horário nobre da mídia televisa completamente mentirosas do governo paulista.
Muito se fala e quaisquer discursos cretinos das campanhas políticas não metem: todos são favoráveis a educação. Palmas e ponto final! Na prática, ninguém, realmente quer levar a sério tais premissas. Muitas vezes, paradoxalmente, nem mesmos os supostos pais dos alunos. Desta maneira, se instala a “terra de ninguém” dentro de uma unidade escolar. As velhas e carcomidas práticas dos que fingem lecionar, outros fingem aprender, o Estado finge que expede diplomas e os pais fingem que tudo isto está muito bem. E a sociedade vive o autismo digno da irrealista “Terra do Nunca”.
Salvo exceções sublimes, o sistema público educacional do país se tornou uma verdadeira fábrica da barbárie. Não se iluda caro leitor, pensando que o sistema privado é melhor. Não, não é! O sistema privado, também salvo exceções, é refém da maldição do “efeito Fuvest”, currículos e práticas “pedagógicas” que somente visam o vestibular e depois propagandear para os pais seus vaticínios de curandeiro escolar. Tudo é lucro no sistema capitalista, naturalmente, o sistema privado de educação não seria diferente. O apelo a estupidez competitiva de alguns colégios aliado a letargia demagógica de outros, montam um quadro bizarro da educação privada. Quem pode pagar, quer que seu filho se transforme no futuro patrão. Quem não possui condições econômicas, é conduzido à tarefa de gari ou camelô. O mais tétrico deste quadro é a promoção do individualismo consumista dos alunos, geralmente da classe média, por parte das escolas que deveriam dar algumas noções mínimas de construção social. A construção da canalhice coletiva é parida dentro dos alegres aquedutos das escolas privadas. A “santíssima trindade” da classe média, ou seja, alunos, pais e colégio, é uma ilusão. A barbárie se instala na medida em que aceitamos complacentemente a divisão nociva das desigualdades sociais.
A era tucana na condução do sistema educacional
O maior de todos os crimes é o roubo da esperança. O Estado brasileiro hoje é um misto profano de promessas, recheada de boas intenções e estagnação. Pouco adianta cantarolar com os louros de alguns segmentos da economia, em particular com os vistosos índices do sistema financeiro, se o âmago da sociedade está em completo estado de letargia e diluição.
Nosso cínico ufanismo nos esportes, por exemplo, é mais uma face teatral e demagógica de nosso suposto “potencial olímpico”. Somente
Quem conhece uma escola pública sabe o estado de abandono das quadras e a orfandade de qualquer programa de incentivo ao esporte. Também salvo exceções de professores de uma alma enorme e um profissionalismo exemplar, o restante é a perda anual de futuros bons atletas para o descaso e a incompetência governamental. Aliás, o descaso se amplia quando o governo coloca burocratas corruptos e incompetentes de acordo com conveniências políticas para conduzir todos os processos de planejamento educacional. Afinal de contas, segue a cartilha tupiniquim do senhor de engenho pós-moderno, na senzala do ensino público, quem liga para os pobres? O restante da sociedade endossa tais pérolas autistas de seus lustrosos castiçais da estupidez.
O brasileiro adora se comparar com os demais povos, mas nunca gosta de ser alvo de comparações. Do futebol às nádegas mercantis da mulher brasileira, o discurso do cinismo é irretocável. Quando o país se colocar frente às quadros comparativos da educação frente à outros países o resultado é invariavelmente catastrófico. Na minha condição de professor, é corrosivamente humilhante ter que conviver com este verdadeiro córrego imundo que décadas de políticas irresponsáveis e acéfalas conduziram nosso sistema educacional ao mais completo limbo. Pouco adianta as tentativas covardes que o governo tucano vem a todo o momento depositar a responsabilidade em cima dos profissionais de educação. Se existem picaretas dentro do sistema, é porque o Estado permitiu. Se existem a evasão dos bons profissionais é porque o Estado foi incompetente para segura-lo. Se o Estado promove a construção da mediocridade pelas vias da barbárie educacional é sinal que nossa sociedade está muito doente. Aliás, em avançado estágio de autofagia putrefata.
Pouco a pouco, estamos instalando a barbárie silenciosa de forma bem acomodada dentro da sociedade. A guerra civil no Rio de Janeiro é o mais belo quadro de completa falência do Estado. Na guerra surda e imunda travada pelos pontos de tráfico dentro das favelas paulistanas é outro retrato de calamidade e caos social. Quem vive realisticamente a realidade da escola pública sabe o quanto é angustiante assistir a indiferença que o Estado vem tratando suas futuras gerações de supostos cidadãos. Em troca de mais cadeias e açoites, precisamos de mais escolas e mais profissionais que estejam engajados num novo sistema educacional.
Currículos estúpidos e defasados. As escolas públicas são hoje verdadeiras sucatadas e caindo literalmente aos pedaços. Profissionais tratados com indiferença e salários irrisórios. Alunos sem estrutura econômica, e em muitos casos, sem a mínima estrutura familiar. Inexiste qualquer auxílio econômico ou psicológico para os alunos. A violência instalada dentro das unidades escolares e banalizada como sendo um “normalizador” da nova sociedade. Falácias e mentiras apregoadas exaustivamente por quase todas as correntes políticas. Colocando num grande liquidificador todos estes fatores o resultado é a construção silenciosa de nosso Auschwitz. A barbárie como sustentáculo de uma sociedade fria, malévola, cínica e materialista. Receita pronta e acabada para o autismo social.
Um exemplo que considero muito emblemática deste bárbaro quadro de nossa contemporaneidade é o excesso de vaias que a classe média está vociferando nos Jogos Pan-americanos no Rio de Janeiro. Começou de forma orquestrada vaiando o presidente da República e depois partiu para quase todos os atletas não-brasileiros nas competições oficiais por medalhas. Triste espetáculo da hipocrisia. Será que estamos gotejando tanto ufanismo assim? Naturalmente, a grande maioria dos “patriotas” e suas vaias estúpidas são os mesmos que dentro seus ciclos minúsculos de amigos fazem gozações igualmente estúpidas contra sua própria pátria. Não somos patriotas, somos brasileiramente cínicos. Permitimos instalar a barbárie dentro de nossa sociedade, e o pensamento imediatismo do umbigo eclode: mas desde que tenha dinheiro para o seguro, dane-se o país! A escola, seja ela pública ou privada, é uma fomentadora de monstruosidades sociais. Daí recai toda a responsabilidade perante a instituição escolar. De todas as mazelas, a escola sem recursos, rumos ou guarida tem como obrigação “cívica” construir o “nosso futuro”. Qual futuro?
O beco é sem saída e a luz no final do túnel parece não existir. Estamos doentes socialmente, construindo e esfacelando paulatinamente nossa sociedade. E o que fazemos? Esperamos tudo eclodir com o ódio e o chumbo oriundo dentro dos guetos dos grandes centros urbanos. Para os abastados, a saída é a porta do aeroporto ou pilotando seus próprios jatinhos. No entanto, para a esmagadora maioria dos brasileiros a realidade é bem mais crua e menos hollywoodiana.
A barbárie nunca mostra seus dentes de uma só vez, sorrateiramente, ela sempre toma corpo diante do silêncio e da esquizofrenia de uma sociedade que somente pensa no seu mais medíocre auto-interesse. A construção da Alemanha nazista com o seu orgulho ferido não foi muito diferente deste quadro. A diferença óbvia é que não somos arianos, nossa história e preconceito são mais “socializáveis”. Não existe mais as bobagens recicladas a respeito de nosso brasileirismo “cordial”. Somente um grau de grande simplicidade ignóbil permite tamanha cordialidade. Projetamos cada vez mais seres destinados aos suicídios das massas, seja pela barbárie, seja pela autofagia. O Brasil precisa deixar de ser o autista país do futuro e se tornar definitivamente um realista país do presente.
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